4/19/2020

Quarentena por João Amado II





As tardes na família Amado são extremamente cansativas no mínimo animadas, tanto que tal como o nosso Presidente em relação à pandemia, já se consegue vislumbrar a luzinha ao fundo do túnel. Esta luzinha chama-se “hora que vai tudo para cama e me deixam em paz”.

Às 14H00 (entretanto já sigo o horário da escola) toca a campainha para as aulas da tarde. O terrorista mai novo está na sesta, mas pode acordar a qualquer minuto, o que aumenta a ansiedade da antecipação dos berros que aí vêm. As tardes significam que os 3 alunos da escola Amado & Companhia vão estar simultaneamente com desfazamentos de 30 minutos a rodar pelos dois computadores cá de casa, em “aulas” com a turma. Estamos no século 21, com internets e 8G e os camandros, mas nunca nada se liga à primeira. Ou falta net, ou falta som, ou falta imagem, ou, como já aconteceu, liguei a criança à turma do irmão mais velho. O Zé não se queixava, mas pediram-lhe para fazer divisões com 3 algarismos e ele ainda acha que a letra “P” é um “T”. Quando percebi o erro, troquei de crianças, mas esqueci-me que o terceiro tinha aula de “dança” e tive que “ligá-lo” a um sitio com espaço, para poder fazer o “crazy monkey” ou lá o que é aquilo. Passámos de música clássica e ballet, para flautas desafinadas e “crazy monkeys” e rotinas tik tok, onde todos sabemos o que é o hip-hop e movimentos corporais que nem percebo.

São 15, estou furiosamente a carregar compulsivamento com força abrutlhada no telemóvel a tirar fotografias aos cadernos e desenhos que fizeram para por numa app para os professores verem. Estou a rezar para que esteja a mandar as fotos certas para os professores certos, enquanto oiço o terrorista a acordar. Ninguém está a ver e fica lá mais um bocado a chorar, porque em tempo de infeções respiratórias é preciso fazer terapia de pulmões e ficar a chorar 10 minutos no quarto parece-me justificado (deve haver pelo menos um “especialista” na net que concorde comigo, por isso tá tudo bem).

Entretanto apitaram as máquinas da loiça e da roupa ao mesmo tempo. O suor começa a crescer e a intensidade a subir. As 15h30 são o auge. Dois a acabar uma aula e o terceiro a começar outra. Um a chorar no quarto, é preciso estender roupa, arrumar loiça e cozinha e não esquecer que ainda vem aí o lanche e aspirar a casa. É esperar ter a sorte de ter vontade de ir à casa de banho que legitima qualquer erro ou dever que falhe ou seja mal executado.

Nesta fase da gincana que é a nossa tarde, tropeça-se mais vezes na cadela, que como em qualquer bom filme cómico, é ... surda. A madeira de casa vai-se soltando com o uso e alguns pregos começam a soltar-se. Aqui, para resolver, apostei no rapaz de 5 anos, explicando que os pregos eram corona-virus. O rapaz passa o tempo livre a martelar o chão a matar coronavirus. Enquanto tiro a loiça da máquina, ouço o Zé a continuar a dizer ao professor que o “P” é um “T” e com ainda mais convicção. Não te preocupes Zézão que quando o pai tiver tempo, vai falar com os senhores do acordo ortográfico e vamos mudar as letras para não te confundir.

Acaba-se de arrumar a loiça e há um certa acalmia à minha volta. Estranho... Mas rapidamente me lembro do terrorista que estava a fazer terapia pulmonar com água salgada. Abro a porta do quarto e está a tocar piano. Perfeito. Aposto que foi assim que o Mozart aprendeu a tocar piano. Ninguém o queria ouvir a chorar e fecharam-no num quarto com um piano a fazer “terapia pulmonar” durante uma “pandemia” que pode ou não ter durado uns anos.

Já só oiço o terrorista, porque expulsei os outros para o “recreio” e tenho que preparar o lanche. Iogurte, mel, torradas e fruta, para freguês escolher. O terrorista vem comigo aspirar, gosta de limpar. Um pianista doméstico num ano e meio. Devemos estar a fazer alguma coisa bem! Tenho um aspirador com uma turbina desenhada pela Nasa e o resto é conversa. Pomos-nos a juntar pares de meias. Mais de metade não têm par e vão esperar a próxima leva para ver se encontram uma pelo menos parecida. Este mistério há de ser explicado algum dia.

São 18. Vou andar mais ou menos rápido correr com eles, para os gastar e fazer exercicio. Mas uma vez cada um, para ritmos diferentes e o facto é que temos trocas de palavras que nem oiço conversas interessantes para cada uma das idades. Mãe fica com o terrorista e planeia o jantar.

São 19 horas, todos para a piscina na banheira onde despejo champoo e tenho pensamentos de afogamento o banho, terrorista incluido. Preparo pijamas e fraldas. Visto os trapalhões, arrumamos mais um bocado o quarto, porque não conseguimos ver o chão com tanto brinquedo e toalhas no chão. Começam a lutar uns com os outros, grrrrr!! Vou sentar-me 15 minutos na sala porque já tá complicado não os empurrar pelas escadas abaixo.

São 20 Horas e sentamo-nos à mesa para fazer terapia de riso, gozar uns com os outros e planear o dia seguinte, que vai ser igual mas em diferente. Acreditem que vamos todos ter saudades da quarentena. Somos mais e melhores, apesar de termos mais vontade de magoarmos os outros e a nós próprios.

As noites são um mundo à parte sobre o qual já escrevi anteriormente, mas consegui subir um nível e agora tenho o maior vilão nocturno para ultrapassar para ganhar este jogo. Sobre isto escreverei mais tarde, porque merece um género literário próprio, uma mistura de romance, ficção e terror que se repete todo o santo dia, neste caso noite.

Fiquem bem e não façam o que eu digo, nem façam o que eu faço. Desenrasquem-se, respirem, e tudo ficará bem.