10/18/2018

a velocidade a que cai uma ficha ou temperatura a que o coração mirra

ontem a pi perguntava-me se já nos tinha caído a ficha. não sei, acho que vai caindo disse eu. não sei o que se espera quando ela cai nem quando ela vai caindo por isso é difícil perceber em que ponto estamos.

estamos tranquilos, as vezes um bocadinho tristes mas no geral a voltar à vida habitual. (ui que até rimou).

contar-vos que contámos aos miudos no fim das festividades para podermos estar presentes e segurar aqueles corações com medo. que afinal até decidimos antecipar para antes de irmos todos juntos deitar as cinzas ao mar para que, principalmente o manel, pudesse ver qualquer coisa acontecer e não ser só um vazio. contar-vos que respirei fundo para não chorar a dizer-lhe e expliquei que a avó estava cansada demais, com muitas dores e muito fraca e pediu para ir para ao pé do pai de da mãe dela no céu. que ele ouviu com atenção e perguntou claramente se tinha morrido, disse que sim e ficámos só abraçados 30 minutos que me pareceram milhões.

aos outros explicamos o mesmo mas com o detalhe mais afincado que era agora uma estrela no céu, diz que facilita a concretização. o zé olhou para nós e constatou que a sua avó já não estava doente, foi à moldura e deu um beijinho. o xavi foi desde logo a janela procurar a avó no céu, em formato de estrela ou o que fosse que tivesse uma cara conhecida, voltou indignado que não estava e o manel rematou com um "quando olhas tens de ver dentro do teu coração". derreteu o meu, o manel percebe e verbaliza o que torna tudo mais facil. talvez ajude a cair a tal ficha com maior velocidade.

a tanica tem focado toda a sua energia em garantir a minha. acho que fiz o mesmo quando morreu a minha avó, depois sozinha chorei. não sei se o faz mas imagino que sim, e que tenha medo como tive mas a vida vai ensinando que se segue e se continua feliz.

achava meio que injusto estar triste quando morreu a minha sogra, o que era a minha tristeza ao lado da do joão que tinha ficado sem mãe?! o espaço que havia era mais para garantir que ele se encontrava naquilo tudo. esse processo tão duro dele e nosso ajudou muito neste meu e nosso processo agora. não era o que queríamos, nem o que desejávamos, nem o que às tantas esperávamos mas foi o que foi e não podíamos ter feito mais e por isso estamos tranquilos e de volta à vida que queremos e nos faz feliz.

vem aí um novo baby, este fenómeno simultâneo de nesting e grieving é meio marado mas de alguma maneira obriga a saber o caminho. a minha mãe era fortíssima no nesting e era uma coisa muito nossa. ela tratava de todas as roupas e quase que inventava listas para prepararmos as duas e temos tudo pronto para os receber. tudo lavado à mão, passado com o rigor do melhor casamento e arrumado em gavetas perfumadas que eu achava que não tinha mas acabávamos por descobrir sempre espaço. nestes últimos meses fomos falando de onde por isto e aquilo e berços e tudo mais. faltava lavar os quilos de roupa que trazíamos de gerações: o cueiro feito pela avó amarelo porque não sabíamos o que aí vinha (eu), ou verde água, coisas dos manos, coisas de todos que a mãe guardou, a primeira camisola que cada um vestiu, a conjugação de kits e no fim era sempre preciso mais collants que não se sabe como desaparecem ou alargam ou ficam velhos. detesto arrumar roupa mas gostava de alegria que isso lhe trazia e sendo que fazia tudo ficava ao lado a adorar.
desta feita deixei tudo isso para ultimo, porque continuo a não gostar menos ainda quando me lembro da alternativa. mandei tudo para casa da minha mãe, sua empregada rigorosa ia repetir o ritual longe dos meus olhos e depois eu de coração lavado arrumava nas tais gavetas forradas numa cómoda comprada pela mãe por poucos escudos na feira da ladra.

ontem fui ver o estado da coisa, até porque as tantas preparamos roupas de festim mas precisamos de ter um desenrasca para se ele decidir nascer daqui a nada. dei comigo e a liliana tinha posto tudo o que eram lãs na maquina de lavar e secar. coração mirrado como aquela roupa que não cabe a ninguém. tudo amassado. tudo pelo cano abaixo. sobram coisas menos boas ou com menos historia, e coisas de linha de verão que não são tão sensíveis a altas temperaturas.

por isso ou pela ficha chorei horas a fio. pelo que sei que não vou ter mais. todo este caminho que faziamos juntas faço agora sozinha, está tudo bem, é a vida mas custa não ter mais ninguém que conheça a dimensão das contrações quando elas surgem (as enfermeiras saberão mas sendo que também são elas que fazem o toque podemos considerar meio que inimigas naquela fase), que explique que o tenho não é vontade de ir à casa de banho é uma cabeça no caminho de saída e que no fim perceba o misto de alegria e exaustão com a pequena grande vida da qual nada sabemos mas vale tudo em nossos braços.

e é isto. a roupa está de molho em amaciador a ver se desmirra. a roupa e o meu coração. ele vai nascer nú na mesma e está tudo bem. nesse mesmo momento sentirei com todas as certezas que não estou sozinha.




10/11/2018

o fim da historia que nunca terá fim

contei-vos o caminho. não tenho obrigação mas por tanto apoio e amor que recebi desse lado quero partilhar as reviravoltas que levaram ao inesperado.

em janeiro tivemos as noticias que o cancro tinha espalhado e por isso iamos perder a nosssa querida mãe em 6-9 meses.
em março soubemos que afinal o que parecia ser cancro pela coluna abaixo era uma infecção lixada que dum bicho que apanhou nos primeiros dias que teve em Sta Maria. uma tal de Eklipsela (ou como se chama). 
mudámos do fim do mundo para o mundo afinal tem cura e por isso vamos apostar tudo nisso. a mãe tinha esta infecção nas costas há sei lá quantos meses, ninguém nos sabia dizer mas sabiam que tinham já ido 3 discos à vida. foi operada 2 vezes, tudo para acabar com a bicha. em paralelo fazia antibioticos aos litros, mesmo quando teve em casa maio e junho fazia 1x ao dia intravenoso.

em junho tivemos ok para ir para espanha fazer autotransplante e rematar a historia do linfoma, aquele a que chamavamos por brincadeira fenisga.* fomos de armas e bagagens, achámos que prontos para o que aí vinha. acontece que quando chegámos as costas continuavam piores e eles não quiseram arriscar sem confirmar mais uma biopsia à possibilidade de ainda ter a tal eklipsela. o cenário que menos queriamos confirmou-se e foram precisos mais 9 semanas de antibiotico para acabar com ela.

9 semanas de internamento, em isolamento. o que significa que cada vez que entrávamos no quarto tinhamos de por bata, luvas e mascara. deixamos de por rapidamente mas os médicos faziam-no religiosamente. não podia circular livremente no hospital e tinha tudo "com pinças". era a última a fazer rx para limparem a sala por exemplo.
a meio de junho começou a ver em double e ninguém dormiu bem até fazer no PET e não se ver nada. passou a ser só um efeito colateral de algum remédio e respirámos. no fim de julho num dos exames de rotina aparece um risco marado no cerebrelo, nada a ver com o sítio do linfoma original, linfoma esse aparentemente curado. dias depois de colheitas de líquidos raquidianos e mil exames viemos a saber dia 6 de agosto que não passava de mais um susto, diziam eles, não sabiam ao certo o que era mas estava estável e parecia não interferir no estado geral da mãe. assumiram um mini avc ou trombose ou cicatriz de guerra e voltamos a respirar.

continuamos com o plano do antibiotico com vista a um autotransplante que, apesar de assustador, nos parecia um sonho, a luz ao fim do túnel.

a meio do mês novos exames e a cena no cerebrelo tinha aumentado contra todas as expectativas. os médicos mais xptos do mundo não sabiam o que seria e toca a fazer mais uma batolada de exames. dia 21 de agosto chega o veredicto e de entre as 3 opções dizem-nos que deverá ser a mais fácil (a melhor e a que tinha tratamento): inflamação (descartamos cancro e infecção). voltamos a respirar mas por poucos dias sendo que o tratamento para a tal inflamação era de uma agressividade imensa. a mãe levou com doses cavalares de corticoides durante 5 dias, estava num misto de exaustão e excitamento pelo remédio. foi uma sova, coitadinha.

esperámos os dias que manda a receita (quando fomos a San Sebastian e biarritz) e novos exames para ver o que se passava com a tal cena. surpresa das surpresas: aumentou. ficou tudo sem saber o que pensar nem dizer. os médicos estudaram tudo o que sabiam e não tinham a certeza de nada. as costas pareciam finalmente limpas da tal bicha e essas eram as boas noticias que nos agarravam ao suposto autotransplante e tentávamos não pensar no resto até que tivessem uma solução. no meio de tantas curvas já não dava para perceber bem a gravidade do que poderia ser.
Para confirmar que a infecção tinha acabado precisávamos de 15 dias sem efeito de antibiotico.

assim foi, a mãe precisava mesmo de vir a casa recuperar energia e a sanidade que a vida intensa de hospital tava a levar. veio para lisboa os prometidos, 15 dias de pausa. todos os dias estava melhor da cabeça em termos de baralhação e exaustão de hospital, mas todos os dias ia perdendo mais movimentos e coordenação. era difícil de assistir, o coração não queria acreditar. ao mesmo tempo fizemos de tudo para que aproveitasse o tempo em casa, que tanto desejou.

teve com tantos amigos, familia e tudo o que é bom em casa voltou. 9 horas de viagem e chegou muito muito fraca. muito mais fraca do que qualquer médico esperaria, fomos directos à urgencia sabendo que não viriam daí boas noticias. os dias seguintes foram de muito medo e ansiedade, a mãe ficou entretanto inconsciente. ao mesmo tempo que era bom pensar que não estava a sentir nada daquilo era horrivel imaginar que nunca mais iriamos poder falar com ela, não nos iamos poder despedir. O manel fez anos dia 24 e ela por milagre acordou com o maior sorriso e pudemos falar e trocar sorrisos. dia 25, nos meus anos, soubemos que depois de tudo sabiam agora que era um novo cancro (impossivel de saber qual por ser numa zona impossivel de biopsar), que não havia solução, havia só pouco tempo. foi o dia mais triste do ano, o dia em que todos me mandavam mensagens de parabéns. ao mesmo tempo a minha ritinha lutadora voltou a abrir os olhos e festejar comigo e connosco. e assim foi até lisboa e depois em lisboa nos seus ultimos 2 dias. 

agora quando me lembro assim de repente desta história lembro-me da cara assustada da mãe há um ano e 2 meses quando soubemos que tinha um linfoma. lembro-me de ver nos seus olhos que não sabia como ia ser, que tinha medo mas que ia lutar. essa mesma cara e todo o amor que nos deu e nos fez querer estar e ser presentes com ela neste caminho que inevitavelmente fez tantas vezes sozinha.

foram meses de muito sofrimento e dor para ela, para todos, mas principalmente ela. 
foram meses em que nos agarrámos a todas as alegrias e que ela sempre tentou aligeirar com humor. demos o nosso melhor para que sentisse sempre a nossa companhia e o nosso amor. não acabou como queriamos mas a vida é assim e não acontece só aos outros. há que aceitar. tivemos a sorte de ter muitos anos muito bons.

os médicos todos foram incriveis a explicar como não podiam saber que o resultado seria este. todos choraram na sua despedida de espanha. 20 estrelas para a clinica universitária de navarra, não conseguiram acabar com o problema mas deram de facto o seu melhor e deram tudo o que podiam pelo conforto da minha querida mãe. na altura em que começou a ver a dobrar já devia ser isto mas não havia como saber: as imagens estavam limpas. depois o primeiro risco no fim de julho foi avaliado de todas as maneiras possíveis e deu sempre negativo. o mesmo para meio de agosto. resta aceitar que há limites para o que conseguimos mudar e viver bem com isso.

e foi assim a história da doença da mãe. não foi nem será o mais marcante da sua vida. ficam as tantas pessoas que tocou no caminho, os milhares de amigos, a família grande e nós os filhos, netos e querido marido.

daqui seguiremos sempre no caminho de ser feliz, alegres e aproveitar a vida como ela tão bem sabia: cheia de amor! 

*porque era preciso o autotransplante se já nao tinha linfoma? para não reincidir. estava em paralelo a tomar imbruvica para prevenir reaparecimento e estava tudo top em termos de indicadores.