a velocidade a que cai uma ficha ou temperatura a que o coração mirra

ontem a pi perguntava-me se já nos tinha caído a ficha. não sei, acho que vai caindo disse eu. não sei o que se espera quando ela cai nem quando ela vai caindo por isso é difícil perceber em que ponto estamos.

estamos tranquilos, as vezes um bocadinho tristes mas no geral a voltar à vida habitual. (ui que até rimou).

contar-vos que contámos aos miudos no fim das festividades para podermos estar presentes e segurar aqueles corações com medo. que afinal até decidimos antecipar para antes de irmos todos juntos deitar as cinzas ao mar para que, principalmente o manel, pudesse ver qualquer coisa acontecer e não ser só um vazio. contar-vos que respirei fundo para não chorar a dizer-lhe e expliquei que a avó estava cansada demais, com muitas dores e muito fraca e pediu para ir para ao pé do pai de da mãe dela no céu. que ele ouviu com atenção e perguntou claramente se tinha morrido, disse que sim e ficámos só abraçados 30 minutos que me pareceram milhões.

aos outros explicamos o mesmo mas com o detalhe mais afincado que era agora uma estrela no céu, diz que facilita a concretização. o zé olhou para nós e constatou que a sua avó já não estava doente, foi à moldura e deu um beijinho. o xavi foi desde logo a janela procurar a avó no céu, em formato de estrela ou o que fosse que tivesse uma cara conhecida, voltou indignado que não estava e o manel rematou com um "quando olhas tens de ver dentro do teu coração". derreteu o meu, o manel percebe e verbaliza o que torna tudo mais facil. talvez ajude a cair a tal ficha com maior velocidade.

a tanica tem focado toda a sua energia em garantir a minha. acho que fiz o mesmo quando morreu a minha avó, depois sozinha chorei. não sei se o faz mas imagino que sim, e que tenha medo como tive mas a vida vai ensinando que se segue e se continua feliz.

achava meio que injusto estar triste quando morreu a minha sogra, o que era a minha tristeza ao lado da do joão que tinha ficado sem mãe?! o espaço que havia era mais para garantir que ele se encontrava naquilo tudo. esse processo tão duro dele e nosso ajudou muito neste meu e nosso processo agora. não era o que queríamos, nem o que desejávamos, nem o que às tantas esperávamos mas foi o que foi e não podíamos ter feito mais e por isso estamos tranquilos e de volta à vida que queremos e nos faz feliz.

vem aí um novo baby, este fenómeno simultâneo de nesting e grieving é meio marado mas de alguma maneira obriga a saber o caminho. a minha mãe era fortíssima no nesting e era uma coisa muito nossa. ela tratava de todas as roupas e quase que inventava listas para prepararmos as duas e temos tudo pronto para os receber. tudo lavado à mão, passado com o rigor do melhor casamento e arrumado em gavetas perfumadas que eu achava que não tinha mas acabávamos por descobrir sempre espaço. nestes últimos meses fomos falando de onde por isto e aquilo e berços e tudo mais. faltava lavar os quilos de roupa que trazíamos de gerações: o cueiro feito pela avó amarelo porque não sabíamos o que aí vinha (eu), ou verde água, coisas dos manos, coisas de todos que a mãe guardou, a primeira camisola que cada um vestiu, a conjugação de kits e no fim era sempre preciso mais collants que não se sabe como desaparecem ou alargam ou ficam velhos. detesto arrumar roupa mas gostava de alegria que isso lhe trazia e sendo que fazia tudo ficava ao lado a adorar.
desta feita deixei tudo isso para ultimo, porque continuo a não gostar menos ainda quando me lembro da alternativa. mandei tudo para casa da minha mãe, sua empregada rigorosa ia repetir o ritual longe dos meus olhos e depois eu de coração lavado arrumava nas tais gavetas forradas numa cómoda comprada pela mãe por poucos escudos na feira da ladra.

ontem fui ver o estado da coisa, até porque as tantas preparamos roupas de festim mas precisamos de ter um desenrasca para se ele decidir nascer daqui a nada. dei comigo e a liliana tinha posto tudo o que eram lãs na maquina de lavar e secar. coração mirrado como aquela roupa que não cabe a ninguém. tudo amassado. tudo pelo cano abaixo. sobram coisas menos boas ou com menos historia, e coisas de linha de verão que não são tão sensíveis a altas temperaturas.

por isso ou pela ficha chorei horas a fio. pelo que sei que não vou ter mais. todo este caminho que faziamos juntas faço agora sozinha, está tudo bem, é a vida mas custa não ter mais ninguém que conheça a dimensão das contrações quando elas surgem (as enfermeiras saberão mas sendo que também são elas que fazem o toque podemos considerar meio que inimigas naquela fase), que explique que o tenho não é vontade de ir à casa de banho é uma cabeça no caminho de saída e que no fim perceba o misto de alegria e exaustão com a pequena grande vida da qual nada sabemos mas vale tudo em nossos braços.

e é isto. a roupa está de molho em amaciador a ver se desmirra. a roupa e o meu coração. ele vai nascer nú na mesma e está tudo bem. nesse mesmo momento sentirei com todas as certezas que não estou sozinha.




Comentários

  1. Lindas e sentidas palavras Rosa :(...lamento muito o que aconteceu! Muita força e coragem, beijinhos de quem está sempre deste lado!

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  2. que texto tão bonito..emocionante! muita força!!! e parabéns pelo bebé! beijinhos

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  3. que texto bonito...acho que o cair da ficha é isso mesmo, chorar desalmadamente por roupas que encolheram, quando sabemos que o queríamos não eram as roupas de volta. vai ser diferente com certeza mas a Rosa tem uma força espetacular por lutar por uma vida feliz. Deus permita que a tenha ;)

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  4. Obrigada pelas palavras que sinto tão perto do meu coração

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