Quarentena por João Amado II
As tardes na família Amado são extremamente
cansativas no mínimo animadas, tanto que tal como o nosso Presidente em
relação à pandemia, já se consegue vislumbrar a luzinha ao fundo do túnel. Esta
luzinha chama-se “hora que vai tudo para cama e me deixam em paz”.
Às 14H00 (entretanto já sigo o
horário da escola) toca a campainha para as aulas da tarde. O terrorista
mai novo está na sesta, mas pode acordar a qualquer minuto, o que aumenta a
ansiedade da antecipação dos berros que aí vêm. As tardes significam que os 3
alunos da escola Amado & Companhia vão estar simultaneamente com
desfazamentos de 30 minutos a rodar pelos dois computadores cá de casa, em
“aulas” com a turma. Estamos no século 21, com internets e 8G e os camandros,
mas nunca nada se liga à primeira. Ou falta net, ou falta som, ou falta imagem,
ou, como já aconteceu, liguei a criança à turma do irmão mais velho. O Zé não
se queixava, mas pediram-lhe para fazer divisões com 3 algarismos e ele ainda
acha que a letra “P” é um “T”. Quando percebi o erro, troquei de crianças, mas
esqueci-me que o terceiro tinha aula de “dança” e tive que “ligá-lo” a um sitio
com espaço, para poder fazer o “crazy monkey” ou lá o que é aquilo. Passámos de
música clássica e ballet, para flautas desafinadas e “crazy monkeys” e rotinas
tik tok, onde todos sabemos o que é o hip-hop e movimentos corporais que nem
percebo.
São 15, estou furiosamente a carregar
compulsivamento com força abrutlhada no telemóvel a tirar fotografias aos
cadernos e desenhos que fizeram para por numa app para os professores verem.
Estou a rezar para que esteja a mandar as fotos certas para os professores
certos, enquanto oiço o terrorista a acordar. Ninguém está a ver e fica lá mais
um bocado a chorar, porque em tempo de infeções respiratórias é preciso fazer
terapia de pulmões e ficar a chorar 10 minutos no quarto parece-me justificado
(deve haver pelo menos um “especialista” na net que concorde comigo, por isso
tá tudo bem).
Entretanto apitaram as máquinas
da loiça e da roupa ao mesmo tempo. O suor começa a crescer e a intensidade a
subir. As 15h30 são o auge. Dois a acabar uma aula e o terceiro a começar
outra. Um a chorar no quarto, é preciso estender roupa, arrumar loiça e cozinha
e não esquecer que ainda vem aí o lanche e aspirar a casa. É esperar ter a
sorte de ter vontade de ir à casa de banho que legitima qualquer erro ou dever
que falhe ou seja mal executado.
Nesta fase da gincana que é a
nossa tarde, tropeça-se mais vezes na cadela, que como em qualquer bom filme
cómico, é ... surda. A madeira de casa vai-se soltando com o uso e alguns
pregos começam a soltar-se. Aqui, para resolver, apostei no rapaz de 5 anos,
explicando que os pregos eram corona-virus. O rapaz passa o tempo livre a
martelar o chão a matar coronavirus. Enquanto tiro a loiça da máquina, ouço o
Zé a continuar a dizer ao professor que o “P” é um “T” e com ainda mais
convicção. Não te preocupes Zézão que quando o pai tiver tempo, vai falar com
os senhores do acordo ortográfico e vamos mudar as letras para não te
confundir.
Acaba-se de arrumar a loiça e há
um certa acalmia à minha volta. Estranho... Mas rapidamente me lembro do
terrorista que estava a fazer terapia pulmonar com água salgada. Abro a porta
do quarto e está a tocar piano. Perfeito. Aposto que foi assim que o Mozart
aprendeu a tocar piano. Ninguém o queria ouvir a chorar e fecharam-no num
quarto com um piano a fazer “terapia pulmonar” durante uma “pandemia” que pode
ou não ter durado uns anos.
Já só oiço o terrorista, porque
expulsei os outros para o “recreio” e tenho que preparar o lanche. Iogurte,
mel, torradas e fruta, para freguês escolher. O terrorista vem comigo aspirar,
gosta de limpar. Um pianista doméstico num ano e meio. Devemos estar a fazer
alguma coisa bem! Tenho um aspirador com uma turbina desenhada pela Nasa e o
resto é conversa. Pomos-nos a juntar pares de meias. Mais de metade não têm par
e vão esperar a próxima leva para ver se encontram uma pelo menos parecida.
Este mistério há de ser explicado algum dia.
São 18. Vou andar mais ou
menos rápido correr com eles, para os gastar e fazer exercicio. Mas uma vez
cada um, para ritmos diferentes e o facto é que temos trocas de palavras que
nem oiço conversas interessantes para cada uma das idades. Mãe fica com o
terrorista e planeia o jantar.
São 19 horas, todos para a
piscina na banheira onde despejo champoo e tenho pensamentos de afogamento o
banho, terrorista incluido. Preparo pijamas e fraldas. Visto os trapalhões,
arrumamos mais um bocado o quarto, porque não conseguimos ver o chão com tanto
brinquedo e toalhas no chão. Começam a lutar uns com os outros, grrrrr!! Vou
sentar-me 15 minutos na sala porque já tá complicado não os empurrar pelas
escadas abaixo.
São 20 Horas e sentamo-nos à mesa
para fazer terapia de riso, gozar uns com os outros e planear o dia seguinte,
que vai ser igual mas em diferente. Acreditem que vamos todos ter saudades da
quarentena. Somos mais e melhores, apesar de termos mais vontade de magoarmos
os outros e a nós próprios.
As noites são um mundo à parte
sobre o qual já escrevi anteriormente, mas consegui subir um nível e agora
tenho o maior vilão nocturno para ultrapassar para ganhar este jogo. Sobre isto
escreverei mais tarde, porque merece um género literário próprio, uma mistura
de romance, ficção e terror que se repete todo o santo dia, neste caso noite.
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