tudo o que sempre quiseste saber sobre viver sobre trissomia 21
Que diferenças sentiu para os outros filhos?
Depois de eu/nós termos digerido esta coisa da trissomia, assumi tudo o que
aí vinha como normal, com os desvios normais de diferenças entre crianças. E
tem sido assim, aos nossos olhos.
Senti de diferente que tive de ir a milhões de médicos para confirmarem que
estava tudo bem. Fiquei meio irritada com isso, porque o sentia bem e não via
grande necessidade de estarem sempre a duvidar.
As terapias desde que nasceu também foram uma novidade, mas que aprendi a
gostar. Hoje vejo-as como um aparelho dos dentes, que eu usei anos, para
endireitar o que pode estar mais fora do sitio. Não me chateiam, só é pena
serem tão caras.
No primeiro ano o zé ia acompanhou bem o desenvolvimento esperado e lembro-me
de sentir inchada de orgulho quando o médico pediatra pôs na caderneta do bebé
"bom desenvolvimento". Tive orgulho com os outros mas talvez não
tanto como desta vez.
A partir do segundo ano de vida via-se que o zé acabava por fazer o mesmo que
os outros mas demorava um bocadinho mais a chegar lá. Demorou mais a andar e
isso preocupou-me, mas acabou por me ensinar a saber esperar. A fala está agora
em fila de espera mas quase pronta a sair, parece-me.
Todos eles têm feitios e desenvolvimentos diferentes, o zé demora mais adquirir
a algumas coisas. Isso talvez seja o diferente. De resto até hoje foi um bebé e
criança igual em tudo.
Como é a relação com os irmãos?
A
relação com os irmãos é igualzinha a qualquer relação de irmãos. Só a Tânia
percebe à seria a trissomia e não a assusta nem afasta, antes pelo contrário.
Tem um orgulho gigante nele, faz por aparecer nas terapias quando pode porque
sabe que ele adora e de resto de vez em quando escapa-se para a cama dele ou
enfia-o na cama dela para dormirem juntos.
O manel, não percebendo bem porquê, sabe que na escola é faz parte dos meninos
"especiais" mas parece-me que para já é meio confuso para ele o
porquê disso. Há uns dias dizia convicto que um dia o zé ia andar de cadeirinha
de rodas, ficámos meio sem saber de onde vinha e ele explicou que era por isso
que ele era especial. Por isso anda claramente confuso. Para já não fazemos
grande questão de explicar muito, a magia entre eles acontece sem grandes
explicações e isso é o importante. O manel sabe que o zé desperta curiosidade e
é um bicho social por isso quer leva-lo a todo o lado que vai, sendo que ele é
mais tímido. Impensável dormir em casa dos avós sem ele, e se tem uma festa de
anos quer leva-lo ou ir com ele. Quando um dia mais velho perguntar explicamos
mas não me parece que vá fazer grande diferença nisto da relação de irmãos.
O xavier é o mais novo e para ele é como devia ser. O zé é mais velho e ele
copia tudo o que ele faz. Tem ciúmes doidos dele e quer tudo o que lhe
pertence, da cadeira da papa aos brinquedos, tudo o que é do zé é o sonho do
xavi.
Provavelmente um dia ele passa-lhe à frente nalgumas competências e os papeis
inverte-se, se calhar, mas acredito que as relações se mantenham iguaizinhas.
O que lhe custa?
Custa-me quando duvidam que ele consiga sem lhe darem
oportunidade. Custa-me pensar que um dia miúdos ou adultos o possam insultar só
pelo ar chinoca, sem mais nada. Custa-me pensar que pode ter dificuldade em
fazer amigos, eu também tive numa fase da vida e não é fácil. Custa-me pensar
que pode não ser aceite na sociedade e por isso viva mais sozinho.
Acredito que se o preparamos bem para a vida, e
tendo a estrutura familiar que temos, isto tudo vão ser preocupações estúpidas.
O que é o melhor?
O melhor de tudo, e sem querer parecer muito frita/freak mas
parecendo, é que quando olhamos para ele lhe vemos o coração e é incrível. Não
está sempre bem disposto, às vezes tá chateado - como toda a gente-, mas está
coisa de o vermos inteiro sem filtros é incrível. Traz bem-estar às pessoas à
sua volta acho que por isso. Chega a ser magnético.
Outra coisa muito boa é a simplicidade de
abordagem de vida, isto não de uma maneira redutora
mas verdadeiramente simplista à laia do Pão-pao-queijo-queijo ou de um amor e é
uma cabana. Não é de grandes complicações de cabeça.
E a coisa da monoemoção (que acabei de inventar).
Tal como se pode ser multitask, podemos sentir um milhão de coisas ao mesmo
tempo por muitas situações diferentes, parece-me que ele sente uma coisa de
cada vez mas de uma intensidade maior - diz que se nos concentramos numa coisa
de cada vez dá melhor resultado, é o que ele faz. Talvez esta seja resultado da
primeira, ou vice-versa.
Além disto traz de bom tudo o que as outras
crianças trazem. Isto talvez seja o mais original.
O que dizer a pais a favor do aborto que descobrem durante a gravidez que vão ter um filho com trissomia 21?
O mesmo que diria se não tivesse trissomia.
Ter filhos é das cenas mais espetaculares da
vida, mas é igualmente assustador se pensarmos que vamos passar a ter o nosso
coração por aí a correr na rua sem o mínimo controlo.
Eles são o que vierem a ser e nunca saberemos
por muito empenho que ponhas na coisa. Vão fazer asneiras e vão-se magoar e não
podes fazer nada. Podes só apoiar incondicionalmente.
A vida é uma montanha russa de tudo e não controlas
quase nada.
Podem ficar doentes e no limite até podem morrer
(esperemos que não). Se não tás preparada para amar outra pessoa, teu filho,
como ele é/será, então às tantas podes não estar preparada para ser mãe.
Vai sem medo e vais ver que seja o que vier não te
vais arrepender e te vai encher de orgulho (quase) todos os dias.
Eu abortar não teria coragem, nunca mais viveria
bem comigo e com a vida. Mas de resto cada um sabe de si.
Concordas que agora que ele é mais pequeno é
mais fácil lidar com as diferenças/limitações do ZM?
Concordo, concordo que todos eles
quando são mais pequenos e mais nossos são mais fáceis de proteger e por isso é
tudo mais fácil. Tudo mais controlado.
Que orientamos para onde vão, o que fazem e que
a maior margem de erro são os testes da escola ou os torneios de futebol.
Quando crescerem estão entregues a eles e as
suas fragilidades são mais visíveis. O Zé e os outros.
Temos de os preparar para saber
falhar, cair e levantar. Temos de lhes ensinar o certo e o errado e esperar que
aprendam. Temos de estar por perto para quando precisarem, mas dar-lhes espaço
para viver.
E se virmos que sozinhos não conseguem voltamos a
ensinar tudo outra vez.
Sem dúvida que é mais fácil agora. São quase só
nossos, não há como falhar.
É mais fácil deixar o xavier em casa de familiares ou amigos ou o zé maria?
Mil vezes o Ze.
O Ze maria ficou a primeira vez com outros com 1
mês. Nós tínhamos um casamento e ficou com a minha tia Nanã. Bebeu o primeiro
biberon com ela e diz ela que foi como se tivesse bebido a vida toda.
Depois disso tem ficado com amigos e família
várias vezes e sempre impecável. Come bem, vai para a cama com juízo, pede para
ir a casa de banho e não faz birras. Pode acordar a meio danoite para beber água e se não tiver na mesinha de
cabeceira pede.
O Xavier é outro campeonato... Aos 4 meses de vida
veio connosco atrela do para os Açores porque não bebia biberon nem por mais
uma e não o ia deixar a chorar à fome. Não dá confianças a ninguém e às vezes
acorda a meio da noite a berrar sem conseguirmos bem perceber porquê. Talvez
pesadelos ou só mesmo mau feitio.
Ainda não tive coragem de o deixar com ninguém a
não ser com a minha mãe (que gosta de mim incondicionalmente), com a Tanica que
é irmã aguenta tudo e com a Lisa que o trata como filho.
De resto era abusar fortemente da paciência de
alguém.
[Comparar
com o Manel é mais equilibrado, com a diferença que o Manel não quer ir dormir
fora se o Zé não for com ele. Abre excepção para primos e melhores amigos]
É mais difícil criar um filho com trissomia 21?
ter a responsablidade e alegria
de criar e educar um filho é das melhores coisas da vida. Qualquer filho traz
desafios diferentes, porque são todos únicos e temos que personalizar essa
educação. Uns filhos é ajudar a facilitar a interacção social e tirar
vergonhas, outros é acompanhar o crescimento com calma e paciência ajudando em
tudo o que se possa e outros é simplesmente tentar
resolver as fúrias com a maior calma possível. Mas qualquer desafio que se
tenha em criar um filho é um desafio para nós receber e abraçar o que nos têm
para ensinar e sobretudo que nos fazem crescer como pessoas. Aliás a vida é
isso, é aprender e ensinar, abraçando os desafios do dia a dia. Não é mais
dificil criar filho a, b ou c. Todos nos trazem desafios diários que nos
obrigam a ser melhores e a fazer o nosso melhor. Mas é tão bom ser pai e ter
direito a esses desafios...
E quando for mais velho e se calhar dependente, já pensaste nisso e como vais lidar com a situação?
Curiosamente não é uma coisa que
aflija ou em que pense muito.
Vamos trabalhar para a sua independência e tenho
a certeza que é possível. Ele terá de perceber o que quer fazer
profissionalmente e ser bom nisso.
Depois há o tema da integração social e daí
virão namoradas ou amigos, se decidir não constituir família pode na mesma
viver numa coisa tipo república. De perto é certo, mas isso não é obrigatoriamente mau.
A vida vai escolhendo o caminho.
Preocupam-me mais escolhas como drogas ou outros
vícios, mau carácter ou desinteresse total pelas coisas da vida. Dessas acho
que ele tá safo.
As outras acho que se resolvem.
Estão a preparar os irmãos para lhe darem apoio?
Estamos a preparar todos para dar
apoio uns aos outros. Não porque seja imposto mas porque queiram, gostem e
acrescente às suas vidas.
Se a vida seguir outros caminhos então nenhum
deve ter a responsabilidade pelo outro.
Cada um deve ter a vida que escolheu e o
realiza.
Estamos a prepara-los a todos para terem vidas
organizadas e estruturadas, essa é a nossa grande responsabilidade como pais.
Terão voltas e surpresas inesperadas pelo caminho e
vão todos precisar de ajuda de alguém nalgum momento.
Não faz mal pedir e só faz bem ajudar.
Se quiserem dar um olho, ou até, uma mão aos irmãos,
que seja por gosto. E será um gosto maior ainda para nós de observar.
A vida para mim faz mais sentido partilhada e
traz-me mais felicidade. Mas isso é para mim, cada um deles escolherá o que
lhes fará mais sentido.
Já sentiram alguma vez descriminação em relação ao Zé Maria? O que fizeram?
Uma, nas piscinas do Benfica.
Não me deixaram inscreve-lo nas aulas normais,
só na hidroterapia (4×mais cara). Na minha perspetiva ele cumpria todos os
requisitos (andava, respeitava ordens e gostava de água) na deles não, mas não
souberam especificar. Podiam até achar que não tinha capacidade, mas só depois
de lhe terem dado uma oportunidade de tentar, não deram.
Tinha tido lá o Manel 2 anos, 2 vezes
por semana e saiu sem saber nadar e com medo de tentar (pior do que tinha
entrado).
Mudei-os aos dois para uma piscina melhor. Em dois
meses a prof Rita pôs o Manel a nadar sozinho e o Zé com prancha. Hoje
continuam os dois, cada um na sua turma em aulas para as idades e sem
tratamentos especiais.
O
que devemos fazer para ensinar os nossos filhos a lidar com a diferença? É que
as crianças não têm filtro
Devemos dizer que realmente não
fala/anda (o que seja) tão bem mas que faz outras coisas muito melhor que
qualquer um. E podemos exemplificar com algumas coisas que a criança que
pergunta faz menos bem (sem a envergonhar está claro). "Quanto tempo
demoras tu a almoçar? O Zé almoça sozinho em 10 minutos". "Sabes
quantos desportos faz o Zé? 3!".
Valorizamos o que tem e desvalorizamos que faz pior. Se não conhecermos a criança
inventamos, é por uma boa causa.
As crianças, como nós, são óptimas a ver as
fragilidades dos outros mas péssimas a realizar que elas também têm coisas em
que não são tão boas. Mais ou menos visíveis.
Aqui a ideia não é nunca rebaixar ninguém, mas tal
como numa aula ninguém tem a mesma nota a todas as disciplinas é fazer ver
isso.
Todos temos coisas boas e más, todos temos muito a
ensinar e aprender, basta darmo-nos oportunidade uns aos outros.
Em que fase da gravidez souberam que tinha trissomia 21?
Às 13 semanas descobrimos que tinha a prega da
nuca aumentada, às 16s fiz amniocentese, às 17s o teste deu inconclusivo, mas
soubemos que era rapaz e às 18s o médico deu a notícia que tinha T21.
Disse-lhe que não fazia mal, gostávamos dele na
mesma e sabia que ia ser muito feliz.
Contamos a todos devagarinho, com tempo para
digerirem e degerirmos nós toda a emoção.
Na eco seguinte fazia v de Vitória com o dedo.
Sempre que me dava um aperto ele dava-me um pontapé, muito meu amigo. Ficava
louco lá dentro sempre que estávamos perto do pai ou do Manel, ainda hoje fica.
De resto foi uma gravidez igual às outras. Nasceu
às 38 semanas de parto normal. Foi o 21 bisneto dum lado da família e nasceu no
mesmo dia que o bisavô Ze Maria Amado, do outro lado da família. Ficamos no
quarto 3.21, os dois, muito bem instalados.
Agora diga, não há coisas espetaculares na vida?
A educação e desenvolvimento de crianças com trissomia obrigam a terapias e afins. Isto é tudo muito caro. Como é que uma família gere isto?
Esta foi das primeiras perguntas,
tem ficado por responder porque realmente não há nada de muito bom a dizer.
Investimos em terapias para potenciar o
desenvolvimento dele, para que vá melhorando onde é mais fraco e se no fim do
dia se integre melhor na sociedade e na vida. Esse investimento é igual a uma
mensalidade de uma escola privada, e custa saber que não podemos fazer mais por
não ter mais dinheiro. Mas é assim. O estado ajuda
quase nada apesar de tudo o que pagamos de impostos.
Temos a sorte dos avós financiarem uma das
terapias, é uma grande ajuda.
O resto vai se fazendo e ajustando, como tudo. E
tendo sempre presente que o Ze não é o único filho e não tem prioridade perante
os outros. Temos de ir pensado e planeando o que é melhor para todos em cada
momento.
É uma ginástica acrobática nem sem sempre linear.
Mas temos conseguido. Custa-me muito pensar como se viram as pessoas com menos
possibilidades e como é possível que num estado social paguem com tranquilidade
soluções para os ter dependentes mas nenhumas para os tornar homens e mulheres
cheios de vida.
Existe um maior nível de condescendência,
permissão?
Acho que não, tentamos que não.
Claro que há sempre dias com mais e menos
paciência para ele e para todos.
Também não fazemos terapias ou brincadeiras
especiais com o Zé em casa para aprender mais disto ou daquilo, fazemos as
mesmas com todos.
Todos têm direito a fazer o que querem (às
vezes), a colo e a ronha.
Todos na mesma medida e cada um à sua.
Há diferentes graus de trissomia 21?
Não e sim.
Ter trissomia 21 é ter um cromossoma a mais no
cromossoma 21. Ou tens ou não tens.
Este erro de divisão das células acontece nos
primeiros segundos de vida e pode afetar todas as células do corpo ou só
algumas. É mais comum que afete todas e por isso a resposta "certa" é
não. Quando não afeta todas a resposta pode ser sim mas só com um testamento
chato se poderia responder em detalhe.
O Ze Maria tem em todas, não há que enganar 😜
De resto é como para o resto da malta sem t21: uns
são mais rápidos, outros mais atentos, uns mais sensíveis e outros umas bestas.
Como no resto da população há de tudo, parte influência da educação, outra da
genética e uma outra só da vida. Por isso uns são mais isto e outros mais
aquilo.
Não há uma maneira certa de fazer a coisa/educar
com t21, tal como não há para o resto da malta. Para uns resulta umas coisas,
para outros outras e não há fórmulas mágicas nem receitas infalíveis. É ir
vivendo e ir aprendendo com a magia da vida.
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